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Exu, de mesageiro a diabo.

Exu, de mesageiro a diabo

 Sincretismo católico e demonização do orixá Exu

Reginaldo Prandi

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 [Texto em publicação na Revista USP]

Os primeiros europeus que tiveram contato na África com o culto do orixá Exu dos iorubás, venerado pelos fons como o vodum Legba ou Elegbara, atribuíram a essa divindade uma dupla identidade: a do deus fálico greco-romano Príapo e a do diabo dos judeus e cristãos. A primeira por causa dos altares, representações materiais e símbolos fálicos do orixá-vodum; a segunda em razão de suas atribuições específicas no panteão dos orixás e voduns e suas qualificações morais narradas pela mitologia, que o mostra como um orixá que contraria  as regras mais gerais de conduta aceitas socialmente, conquanto não sejam conhecidos mitos de Exu que o identifiquem com o diabo (Prandi, 2001: 38-83). Atribuições e caráter que os recém-chegados cristãos não podiam conceber, enxergar sem o viés etnocêntrico e muito menos aceitar. Nas palavras de Pierre Verger, Exu “tem um caráter suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente”, de modo que “os primeiros missionários, espantados com tal conjunto, assimilaram-no ao Diabo e fizeram dele o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em oposição à bondade, pureza, elevação e amor de Deus” (Verger, 1999: 119).

Assim, os escritos de viajantes, missionários e outros observadores que estiveram em território fom ou iorubá entre os séculos xviii e xix, todos eles de cultura cristã, quando não cristãos de profissão, descreveram Exu sempre ressaltando aqueles aspectos que o mostravam, aos olhos ocidentais, como entidade destacadamente sexualizada e demoníaca. Um dos primeiros escritos que se referem a Legba, senão o primeiro, é devido a Pommegorge, do qual se publicou em 1789 um relato de viagem informando que “a um quarto de légua do forte os daomeanos há um deus Príapo, feito grosseiramente de terra, com seu principal atributo [o falo], que é enorme e exagerado em relação à proporção do resto do corpo” (1789: 201, apud Verger, 1999: 133).  De 1847 temos o testemunho de John Duncan, que escreveu: “As partes baixas [a genitália] da estátua são grandes, desproporcionadas e expostas da maneira mais nojenta” (Duncan, 1847, v. I: 114). É de 1857 a descrição do pastor Thomas Bowen, em que é enfatizado o outro aspecto atribuído pelos ocidentais a Exu: “Na língua iorubá o diabo é denominado Exu, aquele que foi enviado outra vez, nome que vem de su, jogar fora, e Elegbara, o poderoso, nome devido ao seu grande poder sobre as pessoas” (Bowen, 1857: cap. 26). Trinta anos depois, o abade Pierre Bouche foi bastante explícito: “Os negros reconhecem em Satã o poder da possessão, pois o denominam comumente Elegbara, isto é, aquele que se apodera de nós” (Bouche, 1885: 120). E há muitos outros relatos antigos já citados por Verger (1999: 132-9), nenhum menos desfavorável ao deus mensageiro que esses.

Em 1884, publicou-se na França o livro Fétichisme e féticheurs, de autoria de R. P. Baudin, padre católico da Sociedade das Missões Africanas de Lyon e missionário na Costa dos Escravos. Foi esse o primeiro livro a tratar sistematicamente da religião dos iorubás. O relato do padre Baudin é rico em pormenores e precioso em informações sobre o panteão dos orixás e aspectos básicos do culto, tanto que o livro permanece como fonte pioneira da qual os pesquisadores contemporâneos não podem se furtar, mas suas interpretações do papel de Exu no sistema religioso dos povos iorubás, a partir das observações feitas numa perspectiva cristã do século xix, são devastadoras. E amplamente reveladoras de imagens que até hoje povoam o imaginário popular no Brasil, para não dizer do próprio povo-de-santo que cultua Exu, pelo menos em sua grande parte.

Assim é retratado Exu por padre Baudin:

“O chefe de todos os gênios maléficos, o pior deles e o mais temido, é Exu, palavra que significa o rejeitado; também chamado Elegbá ou Elegbara, o forte, ou ainda Ogongo Ogó, o gênio do bastão nodoso.

“Para se prevenir de sua maldade, os negros colocam em suas casas o ídolo de Olarozê, gênio protetor do lar, que, armado de um bastão ou sabre, lhe protege a entrada. Mas, a fim de se pôr a salvo das crueldades de Elegbá, quando é preciso sair de casa para trabalhar, não se pode jamais esquecer de dar a ele parte de todos os sacrifícios. Quando um negro quer se vingar de um inimigo, ele faz uma copiosa oferta a Elegbá e o presenteia com uma forte ração de aguardente ou de vinho de palma. Elegbá fica então furioso e, se o inimigo não estiver bem munido de talismãs, correrá grande perigo.

“É este gênio malvado que, por si mesmo ou por meio de seus companheiros espíritos, empurra o homem para o mal e, sobretudo, o excita para as paixões vergonhosas. Muitas vezes, vi negros que, punidos por roubo ou outras faltas, se desculpavam dizendo: ‘Eshu l’o ti mi’, isto é, ‘Foi Exu’ que me impeliu’.

“A imagem hedionda desse gênio malfazejo é colocada na frente de todas as casas, em todas as praças e em todos os caminhos.

“Elegbá é representado sentado, as mãos sobre os joelhos, em completa nudez, sob uma cobertura de folhas de palmeira. O ídolo é de terra, de forma humana, com uma cabeça enorme. Penas de aves representam seus cabelos; dois búzios formam os olhos, outros, os dentes, o que lhe dá uma aparência horrível.

“Nas grandes circunstâncias, ele é inundado de azeite de dendê e sangue de galinha, o que lhe dá uma aparência mais pavorosa ainda e mais nojenta. Para completar com dignidade a decoração do ignóbil símbolo do Príapo africano, colocam-se junto dele cabos de enxada usados ou grossos porretes nodosos. Os abutres, seus mensageiros, felizmente vêm comer as galinhas, e os cães, as outras vítimas a ele imoladas, sem os quais o ar ficaria infecto.

“O templo principal fica em Woro, perto de Badagry, no meio de um formoso bosque encantado, sob palmeiras e árvores de grande beleza. Perto da laguna em que se realiza uma grande feira, o chão é juncado de búzios que os negros atiram como oferta a Elegbá, para que ele os deixe em paz. Uma vez por ano, o feiticeiro de Elegbá junta os búzios para comprar um escravo que lhe é sacrificado, e aguardente para animar as danças, ficando o resto para o feiticeiro.

“O caso seguinte demonstra a inclinação de Elegbá para fazer o mal.

“Invejoso da boa harmonia que existia entre dois vizinhos, ele resolveu desuni-los. Para tanto, ele pôs na cabeça um gorro de brilhante brancura de um lado e completamente vermelho do outro. Depois passou entre os dois, quando estavam cultivando os seus campos. Ele os saudou e continuou o seu caminho.

“Quando ele passou um deles disse:

” — Que lindo gorro branco!

“— De jeito nenhum — disse o outro. — É um magnífico gorro vermelho.

“Desde então, entre os dois antigos amigos, a disputa se tornou tão viva, que um deles, exasperado, quebrou a cabeça do outro com um golpe de enxada.” (Baudin, 1884: 49-51).

O texto termina assim, com esse mito muito conhecido nos candomblés brasileiros, e que exprime de modo emblemático a dubiedade deste orixá. Sem entrar em pormenores que certamente eram impróprios à formação pudica do missionário, há a vaga referência a Príapo, o deus fálico greco-romano, guardião dos jardins e pomares, que no sul da Itália imperial veio a ser identificado com o deus Lar dos romanos, guardião das casas e também das praças, ruas e encruzilhadas, protetor da família e patrono da sexualidade. Não há referências textuais sobre o caráter diabólico atribuído pelo missionário a Exu, que a descrição prenuncia, mas há um dado muito interessante na gravura que ilustra a descrição e que revela a direção da interpretação de Baudin. Na ilustração aparece um homem sacrificando uma ave a Exu, representado por uma estatueta protegida por uma casinhola situada junto à porta de entrada da casa. A legenda da figura diz: “Elegbá, o malvado espírito ou o Demônio” (ibidem, p. 51). Príapo e Demônio, as duas qualidades de Exu para os cristãos. Já está lá, nesse texto católico de 1884, o binômio pecaminoso impingido a Exu no seu confronto com o Ocidente: sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade.

Nunca mais Exu se livraria da imputação dessa dupla pecha, condenado a ser o orixá mais incompreendido e caluniado do panteão afro-brasileiro, como bem lembraram Roger Bastide, que, na década de 1950, se referiu a Exu como essa “divindade caluniada” (Bastide, 1978: 175), e Juana Elbein dos Santos, praticamente a primeira pesquisadora no Brasil a se interessar pela recuperação dos atributos originais africanos de Exu (Santos, 1976: 130 e segs), atributos que foram no Brasil amplamente encobertos pelas características que lhe foram impostas pelas reinterpretações católicas na formação do modelo sincrético que gabaritou a religião dos orixás no Brasil.

II

Para os antigos iorubás, os homens habitam a Terra, o Aiê, e os deuses orixás, o Orum. Mas muitos laços e obrigações ligam os dois mundos. Os homens alimentam continuamente os orixás, dividindo com eles sua comida e bebida, os vestem, adornam e cuidam de sua diversão. Os orixás são parte da família, são os remotos fundadores das linhagens cujas origens se perdem no passado mítico. Em troca dessas oferendas, os orixás protegem, ajudam e dão identidade aos seus descendentes humanos. Também os mortos ilustres merecem tal cuidado, e sua lembrança os mantêm vivos no presente da coletividade, até que um dia possam renascer como um novo membro de sua mesma família. É essa a simples razão do sacrifício: alimentar a família toda, inclusive os mais ilustres e mais distantes ancestrais, alimentar os pais e mães que estão na origem de tudo, os deuses, numa reafirmação permanente de que nada se acaba e que nos laços comunitários estão amarrados, sem solução de continuidade, o presente da vida cotidiana e o passado relatado nos mitos, do qual o presente é reiteração.

As oferendas dos homens aos orixás devem ser transportadas até o mundo dos deuses. Exu tem este encargo, de transportador. Também é preciso saber se os orixás estão satisfeitos com a atenção a eles dispensada pelos seus descendentes, os seres humanos. Exu propicia essa comunicação, traz suas mensagens, é o mensageiro. É fundamental para a sobrevivência dos mortais receber as determinações e os conselhos que os orixás enviam do Aiê. Exu é o portador das orientações e ordens, é o porta-voz dos deuses e entre os deuses. Exu faz a ponte entre este mundo e mundo dos orixás, especialmente nas consultas oraculares. Como os orixás interferem em tudo o que ocorre neste mundo, incluindo o cotidiano dos viventes e os fenômenos da própria natureza, nada acontece sem o trabalho de intermediário do mensageiro e transportador Exu. Nada se faz sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo uma repetição. Sua presença está consignada até mesmo no primeiro ato da Criação: sem Exu, nada é possível. O poder de Exu, portanto, é incomensurável.

Exu deve então receber os sacrifícios votivos, deve ser propiciado, sempre que algum orixá recebe oferenda, pois o sacrifício é o único mecanismo através do qual os humanos se dirigem aos orixás, e o sacrifício significa a reafirmação dos laços de lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do Aiê e os habitantes do Orum. Sempre que um orixá é interpelado, Exu também o é, pois a interpelação de todos se faz através dele. É preciso que ele receba oferenda, sem a qual a comunicação não se realiza. Por isso é costume dizer que Exu não trabalha sem pagamento, o que acabou por imputar-lhe, quando o ideal cristão do trabalho desinteressado da caridade se interpôs entre os santos católicos e os orixás, a imagem de mercenário, interesseiro e venal.

Como mensageiro dos deuses, Exu tudo sabe, não há segredos para ele, tudo ele ouve e tudo ele transmite. E pode quase tudo, pois conhece todas as receitas, todas as fórmulas, todas as magias. Exu trabalha para todos, não faz distinção entre aqueles a quem deve prestar serviço por imposição de seu cargo, o que inclui todas as divindades, mais os antepassados e os humanos. Exu não pode ter preferência por este ou aquele. Mas talvez o que o distingue de todos os outros deuses é seu caráter de transformador: Exu é aquele que tem o poder de quebrar a tradição, pôr as regras em questão, romper a norma e promover a mudança. Não é pois de se estranhar que seja considerado perigoso e temido, posto que se trata daquele que é o próprio princípio do movimento, que tudo transforma, que não respeita limites e, assim, tudo o que contraria as normas sociais que regulam o cotidiano passa a ser atributo seu. Exu carrega  qualificações morais e intelectuais próprias do responsável pela manutenção e funcionamento do status quo, inclusive representando o princípio da continuidade garantida pela sexualidade e reprodução humana, mas ao mesmo tempo ele é o inovador que fere as tradições, um ente portanto nada confiável, que se imagina, por conseguinte, ser dotado de caráter instável, duvidoso, interesseiro, turbulento e arrivista.

Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam, que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara.

Isso tudo contribuiu enormemente para modelar sua imagem estereotipada de orixá difícil e perigoso que os cristãos reconheceram como demoníaca. Quando a religião dos orixás, originalmente politeísta, veio a ser praticada no Brasil do século xix por negros que eram ao mesmo tempo católicos, todo o sistema cristão de pensar o mundo em termos do bem e do mal deu um novo formato à religião africana, no qual um novo papel esperava por Exu.

III

O sincretismo não é, como se pensa, uma simples tábua de correspondência entre orixás e santos católicos, assim como não representava o simples disfarce católico que os negros davam ao seus orixás para poder cultuá-los livres da intransigência do senhor branco, como de modo simplista se ensina nas escolas até hoje (Prandi, 1999). O sincretismo representa a captura da religião dos orixás dentro de um modelo que pressupõe, antes de mais nada, a existência de dois pólos antagônicos que presidem todas as ações humanas: o bem e o mal; de um lado a virtude, do outro o pecado. Essa concepção, que é judaico-cristã, não existia na África. As relações entre os seres humanos e os deuses, como ocorre em outras antigas religiões politeístas, eram orientadas pelos preceitos sacrificiais e pelo tabu, e cada orixá tinha suas normas prescritivas e restritivas próprias aplicáveis aos seus devotos particulares, como ainda se observa no candomblé, não havendo um código de comportamento e valores único aplicável a toda a sociedade indistintamente, como no cristianismo, uma lei única que é a chave para o estabelecimento universal de um sistema que tudo classifica como sendo do bem ou do mal, em categorias mutuamente exclusivas.

No catolicismo, o sacrifício foi substituído pela oração e o tabu, pelo pecado, regrado por um código de ética universalizado que opera o tempo todo com as noções de bem e mal como dois campos em luta: o de deus, que os católicos louvam nas três pessoas do Pai, Filho e Espírito Santo, que é o lado do bem, e o do mal, que é o lado do diabo em suas múltiplas manifestações. Abaixo de deus estão os anjos e os santos, santos que são humanos mortos que em vida abraçaram as virtudes católicas, às vezes por elas morrendo.

O lado do bem, digamos, foi assim preenchido pelos orixás, exceto Exu, ganhando Oxalá, o orixá criador da humanidade, o papel de Jesus Cristo, o deus Filho, mantendo-se Oxalá no topo da hierarquia, posição que já ocupava na África, donde seu nome Orixanlá ou Orixá Nlá, que significa o Grande Orixá. O remoto e inatingível deus supremo Olorum dos iorubás ajustou-se à concepção do deus Pai judaico-cristão, enquanto os demais orixás ganharam a identidade de santos. Mas ao vestirem a camisa de força de um modelo que pressupõe as virtudes católicas, os orixás sincretizados perderam muito de seus atributos originais, especialmente aqueles que, como no caso da sexualidade entendida como fonte de pecado, podem ferir o campo do bem, como explicou Monique Augras (1989), ao mostrar que muitas características africanas das Grandes Mães, inclusive Iemanjá e Oxum, foram atenuadas ou apagadas no culto brasileiro dessas deusas e passaram a compor a imagem pecaminosa de Pombagira, o Exu feminizado do Brasil, no outro pólo do modelo, em que Exu reina como o senhor do mal.

Foi sem dúvida o processo de cristianização de Oxalá e outros orixás que empurrou Exu para o domínio do inferno católico, como um contraponto requerido pelo molde sincrético. Pois, ao se ajustar a religião dos orixás ao modelo da religião cristã, faltava evidentemente preencher o lado satânico do esquema deus-diabo, bem-mal, salvação-perdição, céu-inferno, e quem melhor que Exu para o papel do demônio? Sua fama já não era das melhores e mesmo entre os seguidores dos orixás sua natureza de herói trickster (Trindade, 1985), que não se ajusta aos modelos comuns de conduta, e seu caráter não acomodado, autônomo e embusteiro já faziam dele um ser contraventor, desviante e marginal, como o diabo. A propósito do culto de Exu na Bahia do final do século xix, o médico Raimundo Nina Rodrigues, professor da Faculdade de Medicina da Bahia e pioneiro dos estudos afro-brasileiros, escreveu em 1900 as seguintes palavras:

Exu,  Bará ou Elegbará é um santo ou orixá que os afro‑baianos têm grande tendência a confundir com o diabo. Tenho ouvido mesmo de negros  africanos que todos os santos podem se servir de Exu para mandar tentar ou perseguir a uma pessoa. Em uma altercação qualquer de negros, em que quase sempre levantam uma celeuma enorme pelo motivo mais fútil, não é raro entre nós ouvir-se gritar pelos mais prudentes: Fulano olha Exu! Precisamente como diriam velhas beatas: Olha a tentação do demônio! No entanto, sou levado a crer que esta identificação é apenas o produto de uma influência do ensino  católico (Rodrigues, 1935: 40).

Transfigurado no diabo, Exu teve que passar por algumas mudanças para se adequar ao contexto cultural brasileiro hegemonicamente católico. Assim, num meio em que as conotações de ordem sexual eram fortemente reprimidas, o lado priápico de Exu foi muito dissimulado e em grande parte esquecido. Suas imagens brasileiras perderam o esplendor fálico do explícito Elegbara, disfarçando-se tanto quanto possível seus símbolos sexuais, pois mesmo sendo transformado em diabo, era então um diabo de cristãos, o que impôs uma inegável pudicícia que Exu não conhecera antes. Em troca ganhou chifres, rabo e até mesmo os pés de bode próprios de demônios antigos e medievais dos católicos.

IV

Com o avanço das concepções cristãs sobre a religião dos orixás, ao qual vieram se juntar no final do século xix as influências do espiritismo kardecista, que também absorvera orientações, visões e valores éticos cristãos, Exu foi cada vez mais empurrado para o lado do mal, cada vez mais obrigado, pelos seus próprios seguidores sincréticos, a desempenhar o papel do demônio.

O coroamento da carreira de Exu como o senhor do inferno se deu com o surgimento da umbanda no primeiro quartel do século xx. Apesar de conservar do candomblé o panteão de deuses iorubás, o rito dançado, o transe de incorporação dos orixás e antepassados, e certa prática sacrificial remanescente, a umbanda reproduziu pouco das concepções africanas preservadas no candomblé. A umbanda adotou, não sem contradições e incompletudes, certa noção moral de controle da atividade religiosa voltada para a prática da virtude cristã da caridade, concepção estranha ao candomblé. O culto umbandista foi organizado em torno dessa prática, como se dá no kardecismo, com a constituição de um panteão brasileiro subordinado aos orixás formado de espíritos que ajudam os humanos a resolver seus problemas, que são os caboclos, pretos-velhos e outras categorias de mortais desencarnados. Na umbanda, a própria idéia de religião implica essa noção de trabalho mágico, pois sem a atuação direta dos espíritos na vida dos devotos, a religião não se completa. Mas todas essas entidades só trabalham para o bem. Qualquer demanda, qualquer solução de dificuldades, qualquer procura de realização de anseios e fantasias é tudo filtrado pelo código do bem. Se a ação benéfica resultante da interferência das entidades espirituais for capaz de produzir prejuízos a terceiros, ela não pode ser posta em movimento. O bem só pode levar ao bem e nada justifica a produção do mal. O mal deve ser combatido e evitado, mesmo quando possa trazer para uma das partes envolvidas numa relação alguma sorte de vantagem. Mas o processo de formação dessa religião ainda não se completara.

Com a substituição na umbanda, ao menos em parte, da idéia africana de tabu pela noção católica de pecado, a prática mágica tradicional, que no candomblé era destituída de imposições éticas, ficou aprisionada numa proposta umbandista de religião que desejava ser moderna, européia, branca e ética, apesar das raízes negras que, aliás, procurou apagar tanto quanto possível. Ao mesmo tempo, a umbanda não abandonou as práticas mágicas, ao contrário, fez delas um objetivo bem definido, o centro da sua celebração ritual. Criou-se, com isso, um grande jogo de contradições e a umbanda acabou por se situar num terreno ético que Lísias Nogueira Negrão chamou muito apropriadamente de “entre a cruz e a encruzilhada” (Negrão, 1998). Seguindo o modelo católico, no qual se espelhava, a umbanda foi obrigada a ter em conta os dois lados: o do bem e o do mal. Incorporou a noção católica de mal, mas não se dispôs a combatê-lo necessariamente, nunca se cristianizou completamente. Formalmente, a umbanda afirma que só trabalha para o bem, mas dissimuladamente criou, desde o momento de sua formação, uma espécie de segunda personalidade, com a constituição de um universo paralelo, um lugar escondido e negado, no qual a prática mágica não recebe nenhum tipo de restrição ética, onde todos os pedidos, vontades e demandas de devotos e clientes podem ser atendidos, sem exceção, conforme o ideal da magia. Inclusive aqueles ligados a aspectos mais rejeitados da moralidade social, como a transgressão sexual, o banditismo, a vingança, e diversificada gama de comportamentos ilícitos ou socialmente indesejáveis. Se é para o bem do cliente, não há limite, e a relação que se restabelece é entre o cliente e a entidade que o beneficia, num pacto que exclui pretensos interesses do grupo e da sociedade, modelo que se baseia nas antigas relações entre devoto e orixá, sem contar contudo, agora, com os outros mecanismos sociais de controle da moralidade que existiam na sociedade tradicional africana.

Esse território que a umbanda chamou de quimbanda, para demarcar fronteiras que a ela interessava defender para manter sua imagem de religião do bem, passou a ser o domínio de Exu, agora sim definitivamente transfigurado no diabo, aquele que tudo pode, inclusive fazer o mal. Com essa divisão “cristã” de tarefas, tudo aquilo que os caboclos, pretos-velhos e outros guias do chamado panteão da direita se recusam a fazer, por razões morais, Exu faz sem pestanejar. Assim, enquanto o demonizado Exu faz contraponto com os “santificados” orixás e espíritos guias, a quimbanda funciona como uma espécie de negação ética da umbanda, ambas resultantes de um mesmo processo histórico de cristianização da religião africana. Como quem esconde o  diabo, a umbanda escondeu Exu na quimbanda, pelo menos durante seu primeiro meio século de existência, para assim, longe da curiosidade pública, poder com ele livremente operar. Não faltou, entre os primeiros consolidadores da doutrina umbandista, quem se desse ao trabalho de identificar, para cada uma das inúmeras qualidades e invocações de Exu, um dos conhecidos nomes dos demônios que povoam a imaginação e as escrituras dos judeus e cristãos. Além de se ver chamado pelos nomes do diabo ocidental em suas múltiplas versões, Exu foi compelido a compartilhar com os demônios suas missões especializadas no ofício do mal, tudo, evidentemente, numa perspectiva essencialmente cristã. A maldição imposta a Exu na África por missionários e viajantes cristãos desde o século xviii foi sendo completada no Brasil nos séculos xix e xx.

A umbanda é uma religião de espíritos de humanos que um dia viveram na Terra, os guias. Embora se reverenciem os orixás, são os guias que fazem o trabalho mágico, são eles os responsáveis pela dinâmica das celebrações rituais. Exu, que é fundamental no atendimento dos clientes e devotos, portanto peça básica da dinâmica religiosa, assumiu na umbanda o aspecto de humano desencarnado que é a marca dos caboclos e demais entidades da direita. Diabo sim, mas diabo que foi de carne e osso, espírito, guia. Assim como os caboclos foram um dia índios de reconhecida bravura e invejável bom-caráter, não sem uma certa inocência própria do bom selvagem, inocência perdida com a chegada ao Novo Mundo da nossa sociedade do pecado, assim como os pretos-velhos foram negros escravos trabalhadores, dóceis, pacíficos e sábios, os exus, agora no plural, foram homens de questionável conduta: assaltantes, assassinos, ladrões, contrabandistas, traficantes, vagabundos, malandros, aproveitadores, proxenetas, bandidos de toda laia, homens do diabo, por certo, gente ruim, figuras do mal.

O imaginário tradicional umbandista, para não dizer brasileiro, acreditava que muito da maldade humana é próprio das mulheres, que o sexo feminino tem o estigma da perdição, que é marca bíblica, constitutiva da própria humanidade, desde Eva. O pecado da mulher é o pecado do sexo, da vida dissoluta, do desregramento, é o pecado original que fez o homem se perder. Numa concepção que é muito ocidental, muito católica. Então Exu foi também feito mulher, deu origem à Pombagira, o lado sexualizado do pecado. Quem são as pombagiras da quimbanda? Mulheres perdidas, por certo: prostitutas, cortesãs, companheiras bandidas dos bandidos amantes, alcoviteiras e cafetinas, jogadoras de cassino e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil, mulheres dissolutas, criaturas sem família e sem honra (Prandi, 1996).  O quadro completou-se, o chamado panteão da esquerda multiplicou-se em dezenas e dezenas de exus e pombagiras, que atendem a todos os desejos, que propiciam mesmo a felicidade de duvidosa origem, que trabalham em prol de qualquer fantasia, que oferecem aos devotos e clientes o acesso a tudo o que a vida dá e que restituem tudo o que a vida tira. Não há limites para os guias da quimbanda, tudo lhes é possível. Para a duvidosa moralidade quimbandista, tudo leva ao bem, e mesmo aquilo que os outros chamam de mal pode ser usado para o bem do devoto e do cliente, os fins justificando os meios. Esse é o domínio do Exu cristianizado no diabo. Quando incorporado no transe ritual, Exu veste-se com capa preta e vermelha e leva na mão o tridente medieval do capeta, distorce mãos e pés imitando os cascos do diabo em forma de bode, dá as gargalhadas soturnas que se imagina próprias do senhor das trevas, bebe, fuma e fala palavrão. Nada a ver com o traquinas, trapaceiro e brincalhão mensageiro dos deuses iorubás.

V

No candomblé, como na África, Exu é concebido como divindade múltipla, o que também ocorre com os orixás, que são reconhecidos e venerados através de diferentes invocações, qualidades ou avatares, cada qual referido a um aspecto mítico do orixá, a uma sua função específica no patronato do mundo, a um acidente geográfico a que é associado etc. Sendo o próprio movimento, Exu se multiplica ao infinito, pois cada casa, cada rua, cada cidade, cada mercado etc. tem seu guardião. Também cada ser humano tem seu Exu, que é assentado, nominado e regularmente propiciado, ligando aquele ser humano ao seu orixá pessoal e ao mundo das divindades (Santos, 1976: 130). São muitas as invocações de Exu, muitos os seus nomes. Segundo o ogã Gilberto de Exu, são os seguintes os nomes e atribuições de Exu mais conhecidos: Iangui, o primeiro da Criação, representado pela laterita; Exu Agbá, Agbô, ou Moagbô, o mais velho; Igbá Quetá, o Exu da cabaça-assentamento; Ocotó, o patrono da evolução, representado pelo caracol; Obassim, o companheiro de Odudua; Odara, o dono da felicidade, da harmonia; Ojissebó, o mensageiro dos orixás; Eleru, o que transporta o carrego dos iniciados; Enugbarijó, o que propicia a prosperidade; Elegbara ou Legba, o que tem o poder da transformação, princípio do movimento; Bará, o dono dos movimentos do corpo humano; Olonam, ou Lonã, o senhor dos caminhos; Icorita Metá, o Exu que guarda as encruzilhadas; Olobé, o dono da faca ritual; Elebó, o Exu das oferendas; Odusó ou Olodu, o guardião do oráculo; Elepô, o senhor do azeite de dendê; e Iná, o fogo, o patrono da comunidade que é reverenciado na cerimônia do padê (Ferreira, 2000: 19-21; também em Santos, 1976: 135-9). A estes nomes-qualidades de Exu podemos acrescentar outros registrados por Verger na África e no Brasil, como Eleiembó, Laroiê, Alaquetu, o senhor do Queto, Aquessam, senhor do mercado de Oió, Lalu e Jelu, além de nomes que Verger credita no Brasil aos cultos de origem fom e banto, a saber, Tiriri, Jelebara, Jiguidi, Mavambo, Emberequetê, Sinza Muzila e Barabô (Verger, 1997: 76-8; 1999: 132).  A maioria desses nomes e atribuições, originalmente africanos, é preservada nas casas de candomblé de linhagens mais ligadas à preservação e recuperação das raízes. São nomes que indicam sucintamente as distintas funções de Exu: o mensageiro, o transportador, o transformador, o repositor e o doador.

Tais nomes e atribuições estão, contudo, ausentes na maior parte da umbanda e em certos segmentos do candomblé, em que o reconhecimento de Exu como o diabo é explícito, sendo sua hierarquia conhecida e bastante divulgada por publicações religiosas. Segundo a tábua umbandista de correspondência Exu-diabo, a entidade suprema da “esquerda” é o Diabo Maioral, ou Exu Sombra, que só raramente se manifesta no transe ritual. Ele tem como generais: Exu Marabô ou diabo Put Satanaika, Exu Mangueira ou diabo Agalieraps, Exu-Mor ou diabo Belzebu, Exu Rei das Sete Encruzilhadas ou diabo Astaroth, Exu Tranca Rua ou diabo Tarchimache, Exu Veludo ou diabo Sagathana, Exu Tiriri ou diabo Fleuruty, Exu dos Rios ou diabo Nesbiros e Exu Calunga ou diabo Syrach. Sob as ordens destes e comandando outros mais estão: Exu Ventania ou diabo Baechard, Exu Quebra Galho ou diabo Frismost, Exu das Sete Cruzes ou diabo Merifild, Exu Tronqueira ou diabo Clistheret, Exu das Sete Poeiras ou diabo Silcharde, Exu Gira Mundo ou diabo Segal, Exu das Matas ou diabo Hicpacth, Exu das Pedras ou diabo Humots, Exu dos Cemitérios ou diabo Frucissière, Exu Morcego ou diabo Guland, Exu das Sete Portas ou diabo Sugat, Exu da Pedra Negra ou diabo Claunech, Exu da Capa Preta ou diabo Musigin, Exu Marabá ou diabo Huictogaras, e Exu-Mulher, Exu Pombagira, simplesmente Pombagira ou diabo Klepoth.  Mas há também os Exus que trabalham sob as ordens do orixá Omulu, o senhor dos cemitérios, e seus ajudantes Exu Caveira ou diabo Sergulath e Exu da Meia-Noite ou diabo Hael, cujos nomes mais conhecidos são Exu Tata Caveira (Proculo), Exu Brasa (Haristum) Exu Mirim (Serguth), Exu Pemba (Brulefer) e Exu Pagão ou diabo Bucons (Conforme Fontennelle, s/d; Bittencourt, 1989; Omolubá, 1990).

Na umbanda, assim como no candomblé, cada Exu cuida de tarefas específicas, sendo grande e complexa a divisão de trabalho entre eles.  Por exemplo, Exu Veludo oferece proteção contra os inimigos. Exu Tranca Rua pode gerar todo tipo de obstáculos na vida de uma pessoa. Exu Pagão tem o poder de instalar o ódio no coração das pessoas. Exu Mirim é o guardião das crianças e também faz trabalhos de amarração de amor. Exu Pemba é o propagador das doenças venéreas e facilitador dos amores clandestinos. Exu Morcego tem o poder de transmitir qualquer doença contagiosa. Exu das Sete Portas facilita a abertura de fechaduras, cofres e outros compartimentos secretos — materiais e simbólicos. Exu Tranca Tudo é o regente de festins e orgias.  Exu da Pedra Negra é invocado para o sucesso em transações comerciais. Exu Tiriri pode enfraquecer a memória e a consciência. Exu da Capa Preta comanda as arruaças, os desentendimentos e a discórdia.

Igualmente são múltiplos os nomes e funções de Pombagira: Pombagira Rainha, Maria Padilha, Pombagira Sete Saias, Maria Molambo, Pombagira da Calunga, Pombagira Cigana, Pombagira do Cruzeiro, Pombagira Cigana dos Sete Cruzeiros, Pombagira das Almas, Pombagira Maria Quitéria, Pombagira Dama da Noite, Pombagira Menina, Pombagira Mirongueira, Pombagira Menina da Praia. Pombagira é especialista notória em casos de amor, e tem poder para propiciar qualquer tipo de união amorosa e sexual. Ela trabalha contra aqueles que são inimigos seus e de seus devotos. Pombagira considera seus amigos todos aqueles que a procuram necessitando seus favores e que sabem como agradecer-lhe e agradá-la.  Deve-se presentear Pombagira com coisas que ela usa no terreiro, quando incorporada: tecidos sedosos para suas roupas nas cores vermelho e preto, perfumes, jóias e bijuterias, champanhe e outras bebidas, cigarro, cigarrilha e piteira, rosas vermelhas abertas (nunca botões), além das oferendas de obrigação, os animais sacrificiais (sobretudo no candomblé) e as de despachos deixados nas encruzilhadas, cemitérios e outros locais, a depender do trabalho que se faz, sempre iluminado pelas velas vermelhas, pretas e, às vezes, brancas.

VI

Até uma ou duas décadas atrás, as sessões de quimbanda, com seus exus e pombagiras manifestados no ritual de transe, eram praticamente secretas. Realizadas nas avançadas horas da noite em sessões fechadas do terreiro de umbanda, a elas só tinham acesso os membros do terreiro e clientes e simpatizantes escolhidos a dedo, tanto pelo imperativo de suas necessidades como por sua discrição. Era comum entre os seus cultores negar a existência dessas sessões. A quimbanda nasceu como um departamento subterrâneo da umbanda e como tal se manteve por quase um século, embora desde sempre se soubesse da regularidade desses ritos  e se pudessem reconhecer nas encruzilhadas as oferendas deixadas para Exu.

Aos poucos o culto do Exu de umbanda foi perdendo seu caráter secreto e escondido. Mas nunca houve quem admitisse, seja na umbanda ou no candomblé, trabalhar para o mal por meio de Exu. O mal, quando acontece, é sempre interpretado como conseqüência perversa da prática do bem, pois tudo tem seu lado bom e seu lado mau, de modo que as situações que envolvem os exus são sempre contraditórias (Trindade, 1985).  Se uma mulher está apaixonada por um homem comprometido, por exemplo, e procura ajuda no terreiro, a única responsabilidade da sacerdotisa e da própria entidade invocada é a de atender à súplica. Se a outra mulher tiver que ser abandonada, a culpa é de seu descaso, por não ter procurado e propiciado as entidades que deveriam defendê-la. Se duas ou mais pessoas estão engajadas em pólos opostos de uma disputa, isto significa que há uma guerra entre os litigantes humanos que também envolve seus protetores espirituais, e nada se pode fazer senão tocar a luta adiante, e vencer. Para um praticante desse tipo de relação com o sobrenatural, distinguir entre as questões do bem e a do mal é irrelevante, é dúvida que não se aplica. Esse modo de pensar legitima a prática da magia em todas as suas formas.

A grande expansão da umbanda por todo o País, iniciada nos começo do século xx, e a recente propagação do candomblé que vem ocorrendo de maneira crescente nas últimas três décadas colocaram em contato muito estreito doutrinas e práticas dessas duas religiões. Tanto no Sudeste como no Nordeste e demais regiões, o candomblé de orixá, das mais diferentes nações, que anteriormente havia incorporado o culto das entidades indígenas do candomblé de caboclo, e em casos mais localizados o dos mestres do catimbó, acabou por aderir também aos rituais de exus e pombagiras conforme a prática umbandista. Desde alguns anos, as religiões afro-brasileiras conquistaram um espaço maior de liberdade de culto, num contexto em que se amplifica a diferenciação religiosa e se forma um mercado mágico-religioso plural, com aumento da tolerância religiosa e valorização das diferenças. A quimbanda foi deixando de ser escondida e secreta e seus salões se abriram para um público curioso e ávido por conhecer os favores mágicos de seus exus e pombagiras, que povoaram sem distinção tanto terreiros de umbanda como de candomblé. Hoje em dia, terreiro de candomblé sem os exus e pombagiras da umbanda, sobretudo os de origem mais recente, se contam nos dedos.

A iconografia brasileira dos exus não deixa dúvida sobre o que se pensa deles nas casas em que se observa o culto de quimbanda.  Na verdade, não é preciso ir a um templo em que se realiza culto a essas entidades para ver as estátuas de gesso dos exus e pombagiras de quimbanda em tamanho natural, monumentos figurativos de gosto duvidoso, figuras masculina e femininas concebidas com as roupas, adereços e posturas que se imaginam próprias dos soberanos do inferno e dos humanos decaídos. Para apreciar a iconografia dos exus, basta andar pela rua e passar em frente a uma loja de artigos religiosos de umbanda e candomblé, que têm certa predileção de exibir essas estátuas à venda na entrada dos estabelecimentos, bem à vista. Há uma grande variedade dessas imagens, umas grandes, outras de tamanhos menores, um modelo para cada exu, um para cada pombagira, estas com freqüência idealizadas com roupas sumárias senão escandalosas, lembrando mulheres de vida fácil no imaginário popular. Nos terreiros, elas se encontram no barracão ou mais preferencialmente nos quartos do culto reservado aos iniciados, os quartos-de-santo, ou, conforme a designação umbandista, na tronqueira, o quarto dos exus.

Nos candomblés, em que o uso de imagens figurativas é acessório e menos freqüente e onde as divindades são obrigatoriamente representadas por símbolos elementais consagrados nos assentamentos ou altares, como o seixo do rio ou do mar, a pedra-de-raio, o arco e flecha de ferro, o aro de chumbo, o pilão de prata etc., a representação sagrada de Exu, o orixá, é o tridente de ferro, que no antigo mundo grego era a ferramenta de Netuno e na cristandade é o símbolo do demônio. Essas ferramentas estão expostas com fartura nas lojas de umbanda e candomblé. Também as tronqueiras da umbanda são povoadas de assentamentos montados com os ferros que representam os exus, os garfos-de-exu, tendo as pombagiras ganhado também esse tipo de representação material, que, para distinguir-se daquelas das entidades masculinas, tem um formato arredondado. O falo reaparece na iconografia afro-brasileira de Exu, mas como órgão genital ereto de estatuetas masculinas de ferro com chifres e rabo de diabo, que levam na mão o forcado de três dentes.

O convívio aberto dos devotos e clientes com as entidades de esquerda que hoje se observa e a ampla popularização de seu culto têm, contudo, apresentado um efeito banalizador e desmistificador no que diz respeito à sua suposta natureza de diabo. Exu e Pombagira, por causa de sua convivência estreita com os humanos propiciada pelo transe, passam assim a ser encarados mais como compadres, amigos e guias dispostos a ajudar quem os procura, do que propriamente como demônios. Por outro lado, no processo de competição entre as religiões no contexto de um mercado de bens mágicos cada vez mais agressivo e de ofertas cada vez mais diversificadas, muitos terreiros, para se distinguir de outros, fazem questão de enfatizar e dar relevo às supostas características diabólicas de suas entidades da esquerda. Em candomblés desse tipo, geralmente freqüentados e às vezes dirigidos por pessoas que estão longe de se orientar por modelos de conduta mais aceitos socialmente, se pode contratar qualquer tipo de serviço mágico, qualquer que seja o objetivo em questão. E Exu, o diabo de corpo retorcido, postura animalesca e voz cavernosa, é a entidade mobilizada, juntamente com a espalhafatosa e desbriada companheira Pombagira, para os trabalhos mágicos nada recomendáveis que fazem o negócio rendoso de um tipo de terreiros que eu não hesitaria em chamar de candomblé bandido.

Nesse tipo de paródia religiosa, que representa o degrau mais baixo da histórica decadência a que Exu foi empurrado pelo sincretismo, o culto aos orixás é pouco significativo, fazendo-se uma ou outra festa ao ano para os orixás apenas para legitimar as sessões dedicadas às imitações degradadas do orixá mensageiro. Ao lado dessas práticas também há candomblés e umbandas que “tocam” para exus e pombagiras que se dedicam, como os caboclos e pretos-velhos, ao chamado “trabalho para o bem”. Interessante que esses exus do bem são freqüentemente consideramos como entidades batizadas, convertidas e cristianizadas, já muito distantes tanto da África como da quimbanda, com os atributos que lhes deram fama totalmente neutralizados. Já nem são exus, são “espíritos de luz”, completamente vencidos pela influência kardecista, o outro modelo sincrético da umbanda, além do catolicismo.

VII

O preceito segundo o qual Exu sempre recebe oferenda antes das demais divindades serem propiciadas, e que nada mais representa que o pagamento adiantado que Exu deve ganhar para levar as oferendas aos outros deuses, acabou sendo bastante desvirtuado. Passou-se a acreditar que as oferendas e homenagens preliminares a Exu devem ser feitas para que ele simplesmente não tumultue ou atrapalhe as cerimônias realizadas a seguir. Grande parte dos devotos dos orixás pensam e agem como se Exu devesse assim ser evitado e afastado, momentaneamente distraído com as homenagens, neutralizado como o diabo com que agora é confundido. Seu culto transformou-se assim num culto de evitação. Isto pode ser observado hoje em qualquer parte do Brasil, na maior parte dos terreiros de candomblé e umbanda, e também na África e em Cuba. Faz-se a oferenda não para que Exu cumpra sua missão de levar aos orixás as oferendas e pedidos dos humanos e trazer de volta as respostas, mas simplesmente para que ele não impessa por meio de suas artimanhas, brincadeiras e ardis a realização de todo o culto. Exu é pago para não atrapalhar, transformou-se num impecilho, num estorvo, num embaraço. Como se não bastasse, é tido como aquele que se vende por um prato de farofa e um copo de aguardente. Roger Bastide, que estudou o candomblé na década de 1950, escreveu:

“O pequeno número de filhos de Exu, a diferença dos termos empregados para as crises de possessão dos orixás e dos Exus (…), a vida de sofrimentos das pessoas que têm por destino carregar Exu na cabeça, tudo é sinal do caráter diabólico que se prende a essa divindade. Tal caráter também se manifesta na interpretação que se dá ao padê de Exu. Em nossa apresentação do candomblé, vimos que toda cerimônia, pública ou privada, profana ou religiosa, mortuária ou comemorativa dos aniversários dos diversos orixás, começa obrigatoriamente por uma homenagem a Exu. Esse gesto foi por nós explicado pelo papel de intermediário, de mensageiro, que essa divindade possui. Mas há tendência para explicar de outra maneira o padê, pela inveja ou pela maldade de Exu que perturbaria a festa se não fosse homenageado em primeiro lugar” (Bastide, 1978: 176-7).

A metamorfose de Exu em guia de quimbanda o aproximou bastante dos mortais, mas implicou a perda do status de divindade. Exu passou por um processo de humanização, que é o contrário do que usualmente acontece nas religiões de antepassados, em que os homens são divinizados depois da morte, tendo Exu seguido uma trajetória inversa àquela de orixás como Xangô, que um dia foi rei de carne e osso entre os humanos. A concepção de Exu como espírito desencarnado contribuiu para a a banalização de sua figura de diabo. Para grande parte dos umbandistas e seguidores do candomblé que agregaram as práticas da quimbanda  à celebração dos orixás, os exus estão de fato mais próximos dos homens que do diabo, mas mesmo assim seu campo de ação mágica ainda é recoberto de vergonha, medo e embaraço, pois ainda que não sejam o própria diabo, as chamadas entidades da esquerda trabalham para a mesma malfazeja causa.

É evidente que em certos terreiros da religião dos orixás, sobretudo em uns poucos candomblés antigos mais próximos das raízes culturais africanas, cultiva-se uma imagem de Exu calcada em seu papel de orixá mensageiro dos deuses, cujas atribuições não são muito diferentes daquelas trazidas da África. Nesse meio restrito, sua figura continua sendo contraditória e problemática, mas é discreta sua ligação sincrética com o diabo católico. O mesmo não ocorre quando olhamos para a imagem de Exu cultivada por religiões oponentes, imagem que é largamente inspirada nos próprios cultos afro-brasileiros e que descrevem Exu como entidade essencialmente do mal. A imagem de Exu consolidada por essas religiões, especialmente as evangélicas, que usam fartamente o rádio e a televisão como meios de propaganda religiosa, extravasa para os mais diferentes campos religiosos e profanos da cultura brasileira e faz dele o diabo brasileiro por excelência.

Não podemos deixar de considerar que a recente expansão do candomblé por todo o País se fez a partir de uma base umbandista que se formou antes da transformação do candomblé em religião aberta a todos, sem fronteiras de raça, etnia ou origem cultural. A maior parte dos que aderiram ao candomblé nos últimos vinte ou trinta anos, naquelas regiões do país em que o candomblé só chegou recentemente, foram antes umbandistas, e a adesão ao candomblé não tem significado para parcela significativa deles o compromisso de abandonar completamente concepções e entidades da umbanda. Ao contrário, há um  repertório umbandista que cada vez mais é agregado ao candomblé, a ponto de se falar freqüentemente numa modalidade religiosa que seria mais facilmente identificada por um nome capaz de expressar tal hibridismo, como umbandomblé. Também o candomblé influencia terreiros de umbanda e os empréstimos rituais e doutrinários que podemos observar não são poucos. Assim, em muitos terreiros, Exu pode ter uma dupla natureza. Ele pode ser cultuado, no mesmo local de culto e pelas mesmas pessoas, como o mensageiro mais próximo do orixá africano e como o espírito desencarnado mais próximo dos humanos. E muitos fiéis, tanto da umbanda como do candomblé, se perguntam sobre a natureza de Exu: santo ou demônio? É certo que as transformações de Exu ainda não se completaram: para seus próprios seguidores, Exu é um enigma sempre mais intrincado.

VIII

A imagem de Exu, o Diabo, é fartamente explorada pelas religiões que disputam seguidores com a umbanda e o candomblé no chamado mercado religioso, especialmente as igrejas neopentecostais. Como mostrou  Ricardo Mariano, o neopentecostalismo caracteriza-se por “enxergar a presença e ação do diabo em todo lugar e em qualquer coisa e até invocar a manifestação de demônios nos cultos” para humilhá-los e os exorcizar, demônios aos quais os evangélicos atribuem todos os males que afligem as pessoas e que identificam como sendo, especialmente, entidades da umbanda, deuses do candomblé e espíritos do kardecismo (Mariano, 1999: 113), ocupando os exus e pombagiras um lugar de destaque no palco em que os pastores exorcistas fazem desfilar o diabo em suas múltiplas versões. Em ritos de exorcismo televisivos da Igreja Universal do Reino de Deus, que representa hoje o mais radical e agressivo oponente cristão das religiões afro-brasileiras, exus e pombagiras são mostrados no corpo possuído de novos conversos saídos da umbanda e do candomblé, com a exibição de posturas e gestos estereotipados aprendidos pelos ex-seguidores nos próprios terreiros afro-brasileiros. Todos os males, inclusive o desemprego, a miséria, a crise familiar, entre outras aflições que atingem os cotidianos das pessoas, sobretudo os pobres, são considerados pelos neopentecostais como tendo origem no diabo, identificado preferencialmente com as entidades afro-brasileiras, conforme também mostra Ronaldo Almeida. O desemprego, por exemplo, ao invés de ser considerado como decorrente das injustiças sociais e problemas da estrutura da sociedade, como explicariam os católicos das comunidades eclesiais de base, é visto pela Igreja Universal como resultante da possessão de alguma entidade como Exu Tranca Rua ou Exu Sete Encruzilhadas (Almeida, 1996: 15). Neste caso, o exorcismo deve expulsar o exu que provoca o desemprego.

Os evangélicos se valem ritualmente do transe de incorporação afro-brasileiro para trazer à cena as entidades que eles identificam como demoníacas e se propõem a expulsar em ritos que chamam de libertação. Mariza Soares identifica outro paralelo muito expressivo entre o rito umbandista do transe e o rito exorcista pentecostal. Diz ela: “A sexta-feira é conhecida na umbanda como o dia das giras de Exu que se dão geralmente à noite. A meia-noite, ‘hora grande’ de sexta para sábado é o momento em que os exus se manifestam e trabalham. É justamente nesta mesma hora que nas igrejas [evangélicas] estão sendo realizadas as cerimônias onde esses exus são invocados para, em seguida, serem expulsos dos corpos das pessoas presentes” (Soares, 1990: 86-7).

Ao descrever um ritual exorcista presenciado em um templo da Igreja Universal no bairro de Santa Cecília, no centro de São Paulo, em que se expulsava uma entidade que foi incorporada através do transe e que se identificou como Exu Tranca Rua, Mariano registrou os versos do cântico então entoado freneticamente pelos fiéis: “Tranca Rua e Pombagira fizeram combinação/ combinaram acabar com a vida do cristão/ torce, retorce, você não pode não/ eu tenho Jesus Cristo dentro do meu coração” (Mariano, 1999: 131). Eles acreditam que há um pacto firmado entre as entidades demoníacas para se apossar dos homens e os destuir pela doença, pelo infortúnio, pela morte. É o que representa Exu para os neopentecostais, mas essa imagem está longe de estar confinada às suas igrejas.

Entre os seguidores do catolicismo, a velha animosidade contra as religiões afro-brasileiras, que parecia arrefecida desde a década de 1960, quando a igreja católica deixou de lado a propaganda contra a umbanda, que chamava de “baixo espiritismo”, reavivou-se com a Renovação Carismática. Movimento conservador que divide com o pentecostalismo muitas características, inclusive a intransigência para com outras religiões, o catolicismo carismático voltou a bater na tecla de que as divindades e entidades afro-brasileiras não passam de manifestações do diabo, que se apresenta a todos, sem disfarce, nas figuras de exus e pombagiras (Prandi, 1997). Está de volta a velha perseguição católica aos cultos afro-brasileiros, agora sem contar com o braço armado do estado, cuja polícia, pelo menos até o início da década de 1940, prendia praticantes e fechava terreiros, mas podendo se valer de meios de propaganda igualmente eficazes. Exu, o Diabo, mobiliza e legitima, aos olhos cristãos, o ódio religioso contra a umbanda e o candomblé, corporificado em verdadeira guerra religiosa de evangélicos contra afro-brasileiros.

Essa é a concepção mais difundida que se tem de Exu na sociedade brasileira, é o que se vê na televisão e o que se dissemina pela mídia. Na  idéia mais corrente que se tem de Exu, ele está sempre associado com a magia negra, com a produção do mal e até mesmo com a morte, uma idéia que certos feiticeiros que se apresentam como sacerdotes afro-brasileiros fazem questão de propagar. É amplo o espectro da contrapropaganda que vitimiza o orixá mensageiro, contra o qual parece confluirem as mais diferentes dimensões do preconceito que envolve em nosso país os negros e a herança africana. De fato, em vários episódios de magia negra ocorridos recentemente no Brasil, com o assassinato de crianças e adultos, Exu e Pombagira têm sido apontados pela mídia como motivadores e promotores do ato criminoso. Num desses casos, ocorrido na decada de 1980, no Rio de Janeiro, um comerciante foi morto a mando da mulher por causa de sua suposta impotência sexual. Depois de ter fracassada a aplicação de vários procedimentos mágicos supostamente recomendados por Pombagira, ela mesma teria sugerido o uso de arma de fogo para que a mulher se livrasse do incapaz e incômodo marido. Os implicados acabaram condenados, mas a própria Pombagira, em transe, acabou comparecendo à presença do juiz (Maggie, 1992). E lá estavam todos os ingredientes que têm, por mais de dois séculos, alimentado a concepção demoníaca que se forjou de Exu entre nós: sexo, magia negra, atentado à vida, crime.

IX

No interior do segmento afro-brasileiro, podemos contudo observar nos dias de hoje um movimento que encaminha Exu numa espécie de retorno aos seus papéis e status africanos tradicionais. Em terreiros de candomblé que defendem ou reintroduzem concepções, mitologia e rituais buscados na tradição africana, tanto quanto possível, especialmente naqueles terreiros que têm lutado por abandonar o sincretismo católico, Exu é enfaticamente tratado como um orixá igual aos demais, buscando-se apagar as conotações de diabo, escravo e inimigo que lhe tem sido comumente atribuídas.

No candomblé cada membro do culto deve ser iniciado para um orixá específico, que é aquele considerado o seu antepassado mítico, sua origem de natureza divina. Os que eram identificados pelo jogo oracular dos búzios como filhos de Exu estavam sujeitos a ser reconhecidos como filhos do diabo e, por isso, acabavam sendo iniciados para outro orixá, especialmente para Ogum Xoroquê, uma qualidade de Ogum com profundas ligações com o mensageiro. Até pouco tempo, eram raros e notórios os filhos de Exu iniciados para Exu.

Nas décadas de 1930 e 40, pelo menos, a identificação de Exu com o diabo não era nada sutil, e ser filho de Exu era realmente um grande problema, que devia ser ritualmente contornado nos atos de iniciação. Em seu pioneiro livro de 1948, Candomblés da Bahia, escreveu Édson Carneiro:

“Não se diz que a pessoa é filha de Exu, mas que tem um carrego de Exu, uma obrigação para com ele, por toda a vida. Esse carrego se entrega a Ogunjá, um Ogum que mora com Oxóssi e Exu, e se alimenta de comida crua, para que não tome conta da pessoa. Se, apesar disto, se manifestar, Exu pode dançar no candomblé, mas não em meio aos demais orixás. Isso aconteceu certa vez no candomblé do Tumba Junçara (Ciríaco), no Beiru: a filha dançava rojando-se no chão, com os cabelos despenteados e os vestidos sujos. A manifestação tem, parece, caráter de provação” (Carneiro, 1954:77).

Uma década depois, retomando os escritos de Carneiro e com base em novas investigações de campo, Bastide trata com interesse da questão dos filhos de Exu e das dificuldades por que passam em face da idéia de que ser filho de Exu era ser filho do diabo:

“Exu não se encarna nunca, embora por vezes tenha filhos; conhecemos pelo menos uma filha de Exu e citaram-nos nomes de outros; mas a possessão de Exu diferencia-se da dos outros orixás pelo seu frenesi, seu caráter patológico, anormal, sua violência destruidora — se quisermos uma comparação, é um pouco a diferença que fazem os católicos entre o êxtase divino e a possessão demoníaca. Se Exu ataca um membro do candomblé, é preciso, pois, despachá-lo também, afugentá-lo imediatamente. Mas, com exceção desses casos aberrantes que, afirmamos outra vez, são extremamente raros, a função dessa parte do ritual que descrevemos tem realmente por objetivo a possessão dos homens pelos seus deuses” (Bastide, 1978: 25).

“Conheci apenas um caso controvertido, o de uma filha de Exu; era, porém, a filha que se sentia descontente com seu ‘santo’, e pretendia ser filha de Ogum; o babalorixá que a tinha feito não cessava, ao contrário, de afirmar que S… era mesmo filha de Exu. Em todo caso, logo da primeira vez, não se pode nunca ter certeza de que o babalaô não se enganou. Trata-se de erro muito grave, pois o verdadeiro orixá, a que pertence o cavalo, não deixaria efetivamente de manifestar seu descontentamento, vendo os sacrifícios, os alimentos irem para outro que não a ele; para vingar-se, lançaria doenças, azares, contra o cavalo em questão: justamente porque S… se sentia doente é que acreditava que tinha sido ‘malfeito’ ” (Bastide, 1978; 37).

Nos dias de hoje, isso tudo vem mudando à medida que avança o movimento de dessincretização e já há filhos de Exu orgulhosos de sua origem. Em muitos terreiros de candomblé, concepções e práticas católicas que foram incorporadas à religião dos orixás em solo brasileiro vão sendo questionadas e deixadas de lado. Quando isso ocorre, Exu vai perdendo, dentro do mundo afro-brasileiro, a condição de diabo que a visão  maniqueísta do catolicismo a respeito do bem e do mal a ele impingiu, uma vez que foi exatamente a cristianização dos orixás que transformou Oxalá em Jesus Cristo, Iemanjá em Nossa Senhora, outros orixás em santos católicos, e Exu no diabo. Nesse processo de dessincretização, que é um dos aspectos do processo de africanização por que passa certo segmento do candomblé (Prandi, 1991), Exu tem alguma chance de voltar a ser simplesmente o orixá mensageiro que detém o poder da transformação e do movimento, que vive na estrada, freqüenta as encruzilhadas e guarda a porta das casas, orixá controvertido e não domesticável, porém nem santo nem demônio.

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Referências bibliográficas

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